Escrever não bem romances: visões, morar nelas como num sonho cuja textura é a nossa própria carne, cujos olhos, tal os olhos dos cegos, entendem o movimento, os cheiros, os ruidos, a subterránea essência do silêncio.
[...] O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem: estendem conscienciosamente as toalhas na serradura da areia, protegem-se com óculos escuros do sol de papel, passeiam encantados no palco de Albufeira em que funcionários públicos, disfarçados de hippies de carnaval, thes impingem, acocorados no chão, colares marroquinos fabricados em segredo pela junta de turismo, e acabam por ancorar ao fim da tarde em esplanadas postiças, onde servem bebidas inventadas em copos que não existem, as quais deixam na boca o sabor sem gosto dos uisques fornecidos aos figurantes durante os dramas da televisão.[...]
Antonio Lobo antunes , Conhecimiento do Inferno
[...] El mar del Algarve es de cartón como en los decorados de teatro y los ingleses no lo entienden: Extienden concienzudamente sus toallas sobre el serrín de la arena, se protegen con gafas de sol del sol de papel, pasean encantados por el escenario de Albufeira donde los funcionarios, disfrazados de hippies del carnaval, se les imponen, acuclillados en el suelo, collares marroquíes fabricados a escondidas por la oficina de turismo, y acaban fondeando por la noche en terrazas falsas, donde sirven bebidas inventadas en vasos que no existen, que dejan en la boca el sabor insípido de los whiskys suministrados a los extras durante los dramas televisivos. [...]
Este cuarto libro de crónicas de António Lobo Antunes es una selección de 79 crónicas publicadas en la revista Visão. En estos textos breves, António Lobo Antunes evoca lugares, personajes, retratos de la vida cotidiana y recuerdos de infancia. No moriste en la cama, pero moriste entre chapas horrorosamente arrugadas en la autopista de Cascais a Lisboa y la gente allí, delante de tu ataúd, tan triste". Así comienza la cuarta crónica de este libro, y es un buen ejemplo de la intensidad dramática de unos textos que, aunque mucho más accesibles al público que sus novelas, no descuidan un fuerte componente literario. Y con una narrativa que siempre nos sorprende por la genialidad con la que junta las palabras para formar cada frase, António Lobo Antunes nos lleva de la tristeza a la alegría y nos hace sonreír con la forma en que se ríe de sí mismo y de las pequeñas debilidades de cada uno de nosotros, que "atrapa" y retrata como nadie.
QUE CAVALOS SÃO AQUELES QUE FAZEM SOMBRA NO MAR?
E aqui anda a noite à roda e eu com ela como um papelinho com que o vento brinca, apanha-me, larga-me, empurra-me, corre, mais adiante, a prender-me nos dentes, esquece-se de mim, torna a lembrar- -se, poisa-me uma pata em cima, vai-se embora. O vento. Em certas alturas, dantes, na casa velha dos meus pais, estremecia os caixilhos, na de Nelas batia um ramo contra a janela e eu deitado no escuro, com medo, enquanto o ramo falava sem cessar. Dizendo o quê? Nunca entendi o vento. Ontem no fim do almoço das quintas-feiras no res- taurante onde me junto a um grupo de amigos, o Vitorino e o Janita Salomé cantaram uma moda de Natal onde, a propósito dos Reis Magos, a letra pergunta que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Eles dois um grupo inteiro, a voz do Janita borda por cima da voz do irmão e nós a escutarmos, encantados. Estes dois versos não me lar- gam: que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Gostava de usá-los como título de um livro: tocaram não sei onde, no mais fundo de mim, e eu comovido como tudo, com lágrimas dentro. Porquê? Vou repeti-los mais uma vez dado que não cessam de perseguir-me:que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? É quase Natal, uma época em que me lembro ainda mais do meu avô. Ruas ilumina- das que tornam a noite triste, grinaldas de lâmpadas, uma festa que tremelica no escuro. Há horas recebi a notícia da morte do meu editor francês, Christian Bourgois. Era meu amigo, trabalhávamos juntos há vinte anos, depois da sua operação ao cancro fui por diversas ocasiões a Paris estar com ele. Uma manhã disse-lhe
- És um grande editor
ele respondeu
Não há grandes editores sem grandes autores e a modéstia das suas palavras alegrou-me. Tinha imenso faro para descobrir talentos, não se tornou nunca um comerciante, os livros constituíram sempre a sua razão de ser. Não há muitos editores que eu estime e respeite. Que horrível coisa perder um amigo: e as grinaldas de lâmpadas a tremelicarem no escuro, a tremelicarem no escuro, a tremelicarem no escuro. A melancolia das lâmpadas, gente por todos os lados, enervada, com pressa. Desde que cresci o Natal tornou-se uma multidão de gente enervada e com pressa. Que não fazem som- bra no mar. Não fazem sombra em parte alguma, zangam-se apenas: deve tratar-se do Espírito da Quadra. Não fui eu que perdi um amigo, foi o Christian que perdeu tudo. Canta, Janita: que cavalos são aque- les? Negócio sinistro, o da literatura, as maldades, os meandros, o dinheiro. A quantidade de alturas em que me vêm ganas de não publi- car mais nada. Isto para não falar daquilo a que chamam autores. Mas noventa e nove por cento desses, tal como a multidão de gente enerva- da e com pressa, não fazem sombra no mar. Há tão poucos autores capa- zes disso. Canta, Vitorino: cubram-me de Alentejo até eu não sentir frio, de oliveiras a perder de vista, de campos. Quero ser um papelinho que o vento apanha e larga, empurra, prende nos dentes, esquece, que- ro um ramo contra a janela a falar sem descanso. Dá-me uma mãozi- nha, Janita: que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Ainda o fim de semana passado, na foz do Douro, ondas enormes. Um quarto para as palmeiras, as ondas. Depois das ondas ficava a espuma sozinha, pendurada no ar. Em que me penduro eu, em que nos penduramos nós? Dá-me ideia que com o tempo vou ganhando uma solidez de pedra. Mesmo ao mover-me fico. Quando eles cantam as veias do pes- coço engrossam, os olhos mudam, fitando para dentro. Beja à distân- cia, alargando-se devagar. Sinto-me eterno em Beja. O hospital cheio de doentes onde fui por causa do ouvido. Será impressão minha ou as mulheres, nas terras pequenas, têm mais beleza? No Algarve, por exemplo, na Póvoa de Varzim. No Montijo, onde trabalhei no regres- so de África. Pântanos, água, barcos moribundos, só costelas. Pássaros que não conhecia. Uma tarde, na margem sul do Tejo, um cavalo branco atravessou de súbito a estrada, a galope, de crina longa que dançava. Tratar-se-ia de um dos bichos da moda? Devia tratar-se dado que continua a fazer sombra em mim. E agora? Acende um cigarro, António, prepara o final: uma coisa que se veja, bonita, serena. O quê? Como? Rumores, rumores, escuto silêncios que conversam, vozes que não há, escuto cheiros e cores, sinto-os na língua. E escurece: hoje é o dia mais curto do ano, vinte e um de dezembro. Dezembro com minúscula, sempre escrevi os meses com minúscula. Nasci em setem- bro: as vindimas sou eu. Lá vinham os carros de bois com as pipas, lentíssimos, e eu a pasmar para um pedaço de mica. Os reflexos da mica. A serra azul. O rápido das seis. Vagabundos a atravessarem o pinhal, cheios de raiva. De bordão e barba. Os capotes rasgados e por baixo não as camisas, a pele. Pensando bem são eles os cavalos que fazem sombra no mar, os Reis Magos. Trazem o oiro, o incenso e a mirra embrulhados em papel pardo. E eu nas palhinhas, nu, a sorrir-lhes.
¿QUÉ SON ESOS CABALLOS QUE PROYECTAN UNA SOMBRA SOBRE EL MAR?
Y aquí la noche da vueltas y vueltas y yo estoy con ella como un trocito de papel con el que juega el viento, me atrapa, me suelta, me empuja, corre más, me atrapa entre sus dientes, me olvida, vuelve a recordarme, me pone una zarpa encima, se va. El viento. A ciertas horas, en la vieja casa de mis padres, sacudía los marcos de las ventanas, en Nelas golpeaba una rama contra la ventana y yo me quedaba tumbada en la oscuridad, asustada, mientras la rama hablaba y hablaba. ¿Diciendo qué? Nunca entendí al viento. Ayer, al final de la comida de los jueves en el restaurante donde me reúno con un grupo de amigos, Vitorino y Janita Salomé cantaron una canción de Navidad en la que, a propósito de los Reyes Magos, la letra pregunta ¿qué clase de caballos son los que proyectan una sombra sobre el mar? Ellos dos, todo un grupo, la voz de Janita por encima de la de su hermano y nosotros escuchando, encantados. Estos dos versos no me sueltan: ¿qué caballos son los que proyectan una sombra sobre el mar? Me gustaría utilizarlos como título de un libro: tocaron no sé dónde, lo más profundo de mí, y me conmovieron hasta las lágrimas. ¿Por qué? Voy a repetirlas una vez más porque vuelven a mí ¿qué son esos caballos que proyectan una sombra sobre el mar? Es casi Navidad, una época en la que recuerdo aún más a mi abuelo. Calles iluminadas que entristecen la noche, guirnaldas de bombillas, una fiesta que parpadea en la oscuridad. Hace unas horas recibí la noticia de que mi editor francés, Christian Bourgois, había muerto. Era mi amigo, habíamos trabajado juntos durante veinte años, y tras su operación de cáncer fui a París a verle en varias ocasiones. Una mañana le dije
- Eres un gran editor
me contestó
No hay grandes editores sin grandes autores
y la modestia de sus palabras me encantó. Tenía un gran olfato para descubrir talentos, nunca se convirtió en un hombre de negocios, los libros fueron siempre su razón de ser. No hay muchos editores a los que estime y respete. Qué cosa tan horrible perder a un amigo: y las guirnaldas de bombillas parpadeando en la oscuridad, parpadeando en la oscuridad, parpadeando en la oscuridad. La melancolía de las bombillas, la gente por todas partes, nerviosa, con prisa. Desde que crecí, la Navidad se ha convertido en una multitud de gente con prisa. No proyectan una sombra sobre el mar. No proyectan una sombra en ninguna parte, sólo se enfadan: debe ser el espíritu de la temporada. No soy yo quien ha perdido a un amigo, es Christian quien lo ha perdido todo. Canta, Janita: ¿qué son esos caballos? Es un negocio siniestro, el de la literatura, las travesuras, los entresijos, el dinero. Cuántas veces tengo ganas de no volver a publicar. Por no hablar de cómo llaman a los autores. Pero el noventa y nueve por ciento de ellos, como la multitud de gente con prisa, no proyectan ni una sombra sobre el mar. Hay muy pocos autores capaces de eso. Canta, Vitorino: cúbreme de Alentejo hasta que no tenga frío, de olivos hasta donde alcance la vista, de campos. Quiero ser un trocito de papel que el viento coge y suelta, empuja, atrapa entre sus dientes, olvida, quiero ser una rama contra la ventana hablando sin parar. Échame una mano, Janita: ¿qué son esos caballos que ensombrecen el mar? El pasado
fin de semana pasado, en la desembocadura del Duero, olas enormes. Un cuarto las palmeras, las olas. Tras las olas, la espuma se quedó sola, colgando en el aire. ¿De qué cuelgo, de qué colgamos? Me parece que con el tiempo adquiero una solidez pétrea. Incluso cuando me muevo, permanezco. Cuando cantan, las venas de mi cuello se engrosan, mis ojos cambian, miran hacia dentro. Beja en la distancia, ensanchándose lentamente. Me siento eterna en Beja. El hospital lleno de pacientes al que fui a causa de mi oído. ¿Soy yo o las mujeres son más bellas en las ciudades pequeñas? En el Algarve, por ejemplo, en Póvoa de Varzim. En Montijo, donde trabajé al volver de África. Pantanos, agua, barcos moribundos, sólo costillas. Pájaros que no conocía. Una tarde, en la orilla sur del Tajo, un caballo blanco cruzó de repente la carretera al galope, con sus largas crines bailando. ¿Era uno de los animales de moda? Debía de serlo, porque seguía proyectando una sombra sobre mí. ¿Y ahora qué? Enciende un cigarrillo, Antonio, prepara el final: algo que puedas ver, hermoso, sereno. Rumores, rumores, rumores. Rumores, rumores, oigo silencios que hablan, voces que no están ahí, oigo olores y colores, los siento en la lengua. Y entonces oscurece: hoy es el día más corto del año, el veintiuno de diciembre. Diciembre en minúsculas, siempre he escrito los meses en minúsculas. Nací en septiembre: la vendimia soy yo. Llegaron las carretas de bueyes con los barriles, muy despacio, y yo me quedé mirando un trozo de mica. Los reflejos de la mica. La cordillera azul. La carrera de las seis. Los vagabundos cruzando el pinar, llenos de rabia. Con bastones y barbas. Sus mantos rasgados y debajo, no sus camisas, su piel. Ahora que lo pienso, son los caballos que dan sombra al mar, los Reyes Magos. Llevan oro, incienso y mirra
envueltos en papel de estraza. Y yo estoy sobre mis pajas, desnudo, sonriéndoles.
Traducción, R.Ferreira
Let's be careful out there
No hay comentarios:
Publicar un comentario