miércoles, 27 de septiembre de 2023

Palabras como diamantes

"Porque en nuestro Estado", dice Sócrates," el hombre no se desdobla ni se multiplica, ya que cada uno hace una sola cosa".


Antonio Lobo Antunes persiste con Exhortación a los cocodrilos con su  ciclo sobre la violencia y el miedo, iniciado con Manual de inquisidores y continuado con Esplendor de Portugal. Aquí los protagonistas pertenecen a un grupo terrorista y son llamados «cocodrilos». Entre ellos se encuentran cuatro mujeres desde cuya perspectiva está narrada la historia. Antunes ha reducido el coro polifónico a cuatro voces: cuatro mujeres que rememoran sus experiencias con los jefes terroristas, vinculados al general Spínola, que conocieron en Lisboa después de la Revolución de los claveles, en abril de 1974. Con las voces de estas narradoras, se va construyendo la historia de estos «cocodrilos», que, en opinión de su autor, constituye su mejor novela. Una historia inolvidable sobre el odio, el adulterio, el incesto, la enfermedad, la violencia y la muerte. Las voces de cuatro mujeres reconstruyen la narración en la que intervienen las cuatro acompañantes y que se centra en las acciones de una red de bombas de extrema derecha que opera en Portugal tras la Revolución del 25 de abril. Como personajes menos relevantes para la acción principal  es sin embargo la voz de estas mujeres la que reconstruye los acontecimientos y marca sus diferencias de estatus. La complejidad de las relaciones entre ellas define la forma en que cada una se siente respecto a las demás y se siente considerada o menospreciada por ellas. Poco a poco, las relaciones entre estas mujeres, limitadas a vivir a la sombra de los hombres, irán cambiando para poner fin tanto a su situación personal como a la continuación de las acciones de la red de bombas. 

El capítulo tres de “Exhortación a los cocodrilos”, de António Lobo Antunes es inigualable, todo un paradigma de exquisitez literaria para beber despacio como una buena taza de café Sical. 

"Voar Celina voar: agarravam-me pela cintura, jogavam-me ao tecto, apanhavam-me antes de cair no chão, ria-me porque tinha medo e adorava aquele medo, ficava desamparada um instante lá em cima, de nariz contra a lâmpada e o abajur de folhos, descia numa gargalhadinha de pânico feliz, encontrava o colo do meu tio — Voar Celina por um instante descobria os embrulhos de Natal no topo dos armários, grandes, gordos, com fitas e papel de estrelinhas — Quero a minha prenda — Qual prenda? mais alta que os crescidos, mais alta que os móveis, o meu tio cheirava a água de colónia e o meu pai a tabaco, quando me obrigavam a voar o cheiro afastava-se, a minha mãe contente, a minha avó contente, o meu pai muito sério no canto do sofá, de olhos no jornal, chamava-o — Pai acenava-lhe adeus e o meu pai cobria a cara de notícias enterrado nas páginas, faltava-lhe cabelo, parecia triste, esquecia-me dos embrulhos de Natal — Pai o meu tio piscava o olho à minha mãe e a expressão da minha avó mudava, se quisesse desenroscava a lâmpada e ninguém via à noite ou consertava a vareta do abajur de folhos que o pintor entortou, mas assim que pensei nisso disposta a inventar o escuro (posso fazer escuro, posso fazer dia) — Não toques no candeeiro puseram-me no chão, os objectos rodopiavam, demorei a habituar-me a andar no soalho, primeiro oblíquo e só depois direito, o tapete era de novo o tapete, a casa tornara a ser a casa, não me apetecia rir, não me apetecia que ninguém me falasse, sentei-me debaixo da mesa do almoço com a toalha e as pernas deles à volta — Anda comer Celina a mão do meu tio poisou no joelho da minha mãe e o joelho da minha mãe estremeceu, a mão dela deve ter largado o garfo porque veio pegar na mão do meu tio, colocá-la no joelho dele e aplicar-lhe palmadinhas numa espécie de aviso ou de zanga antes de sumir-se em busca do talher, a minha avó dobrou-se para trás e os dedos de unhas compridas massajaram a canela, as pernas do meu pai permaneciam direitas, uma das meias, sem elástico, mostrava um pedaço de pele, o sapato do meu tio, mais bem engraxado que os meus e os do meu pai — Anda comer Celina calcou o bico do sapato da minha mãe, o salto do outro sapato da minha mãe, a que faltava a ponta de borracha, principiou a roçar para trás e para a frente o tornozelo do meu tio, a mão dele tornou a poisar no joelho da minha mãe, alargou-se um bocadito pela coxa acima e desta feita a mão da minha mãe não a tirou de lá, o salto continuava a esfregar o tornozelo, deve tê-lo picado com o prego dado que o rabo do meu tio deu um pulinho, a voz da minha avó, preocupada, vinda da metade invisível da cintura para cima — Encontraste alguma espinha Joaquim? a mão da minha mãe, a da aliança e do anel com um brilhante falso que escondia a aliança (experimentei-o quando estava no banho e o deixava no quarto e até do polegar me escorregava) afagou a calça do meu tio a consolá-lo, a mão do meu tio apertou-se na dela, as falanges de ambos dobraram-se falange sim falange não, a grossa a fina, a grossa a fina, a grossa a fina excepto os polegares no que se assemelhava a uma luta, o grosso a enroscar-se no fino e o fino a escapar, o guardanapo do meu pai escorregou e tombou, as mãos evaporaram-se de imediato, os sapatos alinharam-se, dois a dois, conforme me ensinaram a fazer na hora de deitar só que agora com pessoas dentro, o tornozelo do meu tio tinha um risco vermelho, a voz dele enquanto o jarro da água tilintava no copo — Uma espinha das grandes engoli-a a minha mãe num tom estranho que me deu comichão na barriga — Que horror não bem um tom estranho, uma entoação que me tornava zonza sem entender o motivo, dava vontade de pedir — Repita e estender-me na alcatifa a fim de sentir o áspero da lã ou o que era nos rins, dançar para a direita e para a esquerda e a alcatifa a magoar-me mas não era dor, ao desejar estender-me a mão do meu pai, mais morena, com mais pêlos, tacteou o guardanapo perdido, a abrir-se e a fechar-se às cegas, não o encontrou, tacteou mais adiante, foi-se dilatando em círculos, embateu no calcanhar da minha mãe e o calcanhar escapou-se enervado — Que disparate larga-me o que é isto? despertando-me da zonzice e do desejo de me aleijar na alcatifa, para conseguir qualquer coisa que o aleijar dava e eu sabia existir sem saber o que era, uma raiva doce, um ímpeto, um desmaio — Voar Celina voar o nariz contra a lâmpada e o abajur de folhos, o cheiro da água de colónia afastava-se e vinha, adorava aquele medo, a mão do meu pai achou a minha saia e arrepanhou a saia tomando-a pelo guardanapo — Pai um — Pai igual ao — Que horror da minha mãe, dedos escuros, peludos, a meia sem elástico a tapar o sapato, a cara sob a toalha rente à minha cara com os pontos da barba no queixo e nas bochechas, o branco do olho encarnado de esforço, uma veiazinha na testa — Anda comer Celina a almofada na cadeira para chegar ao prato, a minha avó a atar-me com força demais os cordões do babete — Não preciso sou grande a minha mãe agora só da cintura para cima o que fazia com que tivesse duas mães, a da cabeça a levar a sopa à boca com imensos modos e a das pernas sem modos nenhuns, a roçar o salto do prego no tornozelo, a dos modos vigiava-me a colher num gesto sem paciência — Não faças porcarias e cala-te queria que me pegassem ao colo, me oferecessem as prendas do armário, adormecer e acordar logo a seguir da idade deles (não, mais velha) e ralhar-lhes — Sou mais velha que vocês tirem-me o babete imediatamente e dêem-me um triciclo com uma campainha pelo modo como a minha mãe ficava de vez em quando, parada, sem ver, numa atitude de reza, compreendia que o meu tio recomeçara a pisá-la e os polegares lutavam no joelho, o meu pai mergulhado no prato como no jornal, a minha avó furiosa ou inquieta ou as duas coisas juntas — Manuela a brincar com a argola e a soltar a argola, a espiar o meu pai, a designar-me com o lábio comprimindo o cotovelo no cotovelo do meu tio — Joaquim que parara de mastigar e rezava igualmente, à beira de um ataque ou de sair flutuando pela janela escancarada, procuravam-se no corredor, as bocas tocavam-se e afastavam-se rápidas, a minha mãe numa bofetadita, em soluços sumidos — Mas que doido Joaquim no tal tom estranho que dava vontade de suplicar — Repita à medida que a lã da alcatifa me magoava as costas e não era dor, era ficar um instante desamparada lá em cima de nariz contra a lâmpada, com medo e a adorar o medo — Voar Celina voar mais alta que os crescidos, mais alta que a mobília, num susto feliz, eram os objectos a rodopiarem, era desaprender de andar, ao afastar a boca o meu tio tropeçou em mim, encostou-se à parede, perguntou à minha mãe pelo ângulo dos lábios (viam-se-lhe gotinhas de cansaço na testa sem ter corrido nem ter feito força) — E se a miúda conta? indignava-me o babete e a almofada na cadeira por insistirem que eu fosse criança quando era mais adulta que eles, devia ter a prateleira das bonecas cheia de frascos de perfume, quer dizer não as perdia Catarina Mariana Luísa ficava com as bonecas e os frascos também, tal como, por exemplo, podia andar de triciclo com saltos altos, qualquer pessoa pode, o meu tio, com a mania que sou uma criança, a procurar o lenço no bolso e a enxugar as gotinhas — E se a miúda conta? a minha mãe no timbre agudo com que se dirigia ao meu pai e às vendedoras da praça, de nariz levantado numa expressão de desgosto — Tens medo? só lhe faltava o porta-moedas e o cesto das compras, só lhe faltava não estar pintada e usar saltos rasos, à noite trancava-se no quarto de banho e saía com rolos e creme nas bochechas, nunca me deixou experimentar — Larga a bisnaga Celina e por isso tenho rugas que a esteticista jura serem vincos de expressão — São vincos de expressão dona Celina vincos de expressão o tanas, fico de cara quieta e lá estão elas, sorrio e permanecem intactas para além das que surgem com o sorriso (centenas)arrepanho-me para tirar dúvidas e idem, levanto as sobrancelhas e dou com a esteticista no espelho — Vincos de expressão o tanas Elisabete trinta anos se tanto, menos dez do que eu, nenhuma celulite, nenhumas varizes, as nádegas firmes, o pescoço impecável, vencendo-me com muito menos dinheiro, um marido bêbedo, uma vida de cadela, que ridículo chorar — Venho aqui todas as manhãs para quê? as restantes freguesas em silêncio, velhas do meu género, ou seja não suficientemente velhas para não se acharem velhas, tão zangadas com o tempo quanto eu, não tão decadentes que cessassem de ter dó de si próprias, uma atmosfera de vapor, uma tranquilidade morna, a calista a alinhar pinças na toalha, massagens, ligaduras, ginástica, uma mentira de promessas de juventude que não se cumprem nunca, ainda agora eu debaixo da mesa, ainda agora o meu tio — Voar Celina voar a minha mãe (— E se a miúda conta?) corredor adiante, sacudida de nojo — Cobarde o desprezo dos saltos no soalho, numa pressa militar, o da ponta de borracha mais leve, o do prego mais duro, a passadeira prendia-se no prego que lavrava o tecido e formava barrigas, a minha mãe nem notava, a minha avó aterrada — Já viste Manuela? a abrir o estojo dos óculos (queria tanto óculos, queria tanto um soutien, colocava os óculos e a minha família respeitava-me, bocejava sem pôr a palma à frente, lia os jornais, não aturava a escola) a minha avó de óculos a examinar os estragos, tentava disfarçar os buracos do prego com as ferramentas da costura, virava a passadeira do avesso para coser por baixo — Sim senhor Manuela lindo serviço olhava a minha mãe, olhava o meu tio, abanava a cabeça, o meu tio sentava-se no sofá ao lado do meu pai, receoso e prestável, o cheiro da água de colónia e o cheiro do tabaco confundidos, mais o cheiro do medo e o traço na pele, a meia sem elástico mostrava um osso saído, o meu tio num entusiasmo difícil — Queres vir pescar no domingo Fernando? os dois na muralha e eu aborrecidíssima num banquinho de lona, despi e vesti a Mariana mil vezes, acabei por lhe desarticular um braço e esquecer-me dela, não podia debruçar-me — Não te debruces que cais ao Tejo Celina não podia fazer barulho que assustava os peixes, não podia tirar o chapéu de palha que adoecia do sol, não podia andar ao pé coxinho, só a tocar as pedras pretas, que irritava o meu pai, contei os paquetes e como não estavam alinhados perdi-me, recomecei a contar e aos dezassete fartei-me, o sol semeava punhados de lantejoulas no rio, as gaivotas caminhavam de esguelha na praia fitando-me como a minha avó fitava a minha mãe, o esgoto avançava pelo Tejo entre palhas e tábuas, um homem apanhava pedaços de garrafa e entornava-os num saco, as ondas traziam uma bóina, o cadáver de um galo e um cesto de verga, tudo sem interesse algum, monótono, compridíssimo, havia prédios desabitados para trás de nós, de janelas cobertas com tábuas, quintais de arbustos secos e aposto que fantasmas, antes que os fantasmas me fizessem mal agachei-me para a lata do isco, um verme atingira o rebordo e escorregava para fora — Minhoca minhoca chamava-me o sócio do meu marido — Anda cá minhoca a Mimi é surda não ouve o meu pai numa sapatada — Quieta uma traineira latejava o seu rastro de gasóleo, excitando as gaivotas que cessaram de fitar-me — Tantas rugas Celina tantas rugas e se ergueram da praia, aos gritos, bicando a tira negra misturada com a espuma, de tempos a tempos a cana de pesca arqueava-se, giravam o carreto e não traziam robalos, traziam um peso de chumbo, limos, o anzol vazio, a água formava parênteses e vírgulas que se alargavam em torno da linha como das minhas pálpebras — Não se preocupe dona Celina são vincos de expressão e o espelho para mim, não distraído, atento, a percorrer-me as feições — Vais morrer eu transida a escutá-lo, porquê eu, enquanto tirava os anéis diante do toucador, na véspera de quebrarem o vidro do automóvel do meu marido, o obrigarem a parar, os antigos polícias apontarem as metralhadoras, o corpo às sacudidelas no assento deslizando para o chão, comecei a chorar ao espelho e o meu marido sem desconfiar de nada, ocupado a deslaçar a gravata e a guardar os botões de punho na taça — Não te sentes bem incomoda-te alguma coisa Celina? — Tem de ser amanhã minhoca não me digas que não preferes assim não me digas que te agradava que nos denunciasse a todos Mimi tenho a certeza, por mais surda que fosse, que sabia de nós e se calava como a minha avó se calava — A avó dela é melhor que a tua inventou a Coca Cola lá na Galiza Celina a surda que se erguia a dormir para espreitar o anúncio luminoso do largo, utilizava um telefone sem campainha com uma luzita que acendia e apagava, o sócio do meu marido encostou-mo à orelha, ecos de palavras deformadas, como a garganta de Deus anunciando o Dilúvio, a afilhada do bispo, incrédula, a avaliar o aparelho tocando-lhe à cautela no pavor de choques — Credo o meu marido sem desconfiar de nada, ocupado a deslaçar a gravata e a guardar os botões de punho na taça — Não te sentes bem incomoda-te alguma coisa Celina? um viúvo da idade do meu pai, igualmente sério, igualmente calado, igualmente a enterrar-se no jornal mas de sardas e pêlos ruivos no dorso das mãos, conhecemo-nos quando acabou o segundo hotel e eu trabalhava de escriturária na companhia de seguros, era raro o dia em que não vinham jacintos não rosas, não camélias, jacintos, o sócio dele — Acho que o velhote se apaixonou por si menina Celina sorria-me, convidava-me para o cinema às escondidas, para almoçar às escondidas, espalmava a mão no meu joelho como o meu tio com a minha mãe — Somos sócios em tudo minhoca só que deste negócio ele não tem de saber se jantávamos os quatro carregava-me com a metade de baixo no bico do sapato ao mesmo tempo que a metade de cima se explicava à surda, arredondando os olhos, o indicador da surda fabricava uma bolinha de pão sem deixar de medir-me, sucede-me pensar — Descansa que nunca te fará uma cena os surdos são diferentes sabias? que entendia as coisas como os bichos entendem, atravessava a toalha com a vista e percebia os joelhos, as pernas, sucede-me pensar que nem sequer me detestava, que ao mirar-nos mirava para além de nós como esta manhã ao estudar-me no espelho (que ridículo enfurecer-me com a velhice, com as rugas) surgia sobre as minhas feições a muralha do rio, as lantejoulas, as duas canas de pesca, os prédios desabitados, com quintais de arbustos secos e de certeza cobras, ratos, o espírito dos defuntos nos compartimentos vazios, a Mariana sem um braço e de repente o meu pai para o meu tio — Seu pulha a jogar a lata das minhocas às ondas, a jogar o farnel que se desembrulhou na água, o frango, as batatas, o pão, as gaivotas largaram o gasóleo a batalharem entre guinchos de criança ou mulher — Lembra-te que a Mimi é surda minhoca não te aflijas não pares agora a lutarem com as patas, as asas, os peitos eriçados, um albatroz enxotou-as num rebuliço de penas, colheu um pedaço de couve-flor e foi-se embora escalando o céu na direcção da Malveira, as mãos do meu pai iguaizinhas às gaivotas — Você cuida que eu sou idiota seu pulha? o banquinho de lona atirado às ondas, o meu tio esmagou a Mariana com a sola, a baquelite rebentou, o mecanismo que tremia — Pipi não passava de um folezito de pano sem mistério, provido de uma mola como os relógios de cuco, não era a Mariana quem suspirava, era aquilo, agitava-se o folezinho, separado da boneca, a boneca defunta no chão e o folezinho vivo — Pipi detesto a Mariana, detesto todas as pessoas do mundo, aldrabonas, chegando aos Anjos vou buscar o martelo, parto-as e deito-as no lixo, escusam de fingir, armar cenas, pedir — Pipi argumentar — Não se preocupe dona Celina são vincos de expressão com íris mentirosas de plástico, um rapaz de bicicleta parou a metros do meu pai e encaixou o pedal no passeio — Ó sócio as gaivotas, suspensas, desejavam que o meu tio tombasse da muralha para o esquartejarem também, lutando com as patas, as asas, os peitos eriçados, o meu tio a apertar o lábio com o lenço — Eu queixo-me à polícia Fernando o sol ia-se tornando transparente e roxo, as caves dos prédios abandonados dissolvidas em sombras, as gaivotas desiludiam-se aos poucos, hesitando entre nós e o gasóleo, o rapaz da bicicleta, que não cheirava a tabaco nem a água de colónia, cheirava a lona de barco, enfiou o meu pai e o meu tio no automóvel — Juizinho alçou-me para o banco traseiro, entregou-me o que restava da Mariana, o braço amputado, o folezito de pano, o meu tio ligou o carro, um cachorro magríssimo, menor que os seus latidos, atravessou a estrada numa melancolia de derrota, o meu pai e o meu tio eram um par de nucas quietas detestando-se, as mãos do meu tio segurando o volante e a do meu pai no ar com menos raiva que há bocado — Seu pulha ao mesmo tempo que o folezinho implorava — Pipi sem eu lhe ter mexido, desci a janela e lancei-o no escuro como lancei o braço — Aldrabona e a seguir devo ter adormecido com os balanços porque não recordo mais nada, de chegarmos a Lisboa, me despirem, me enfiarem na cama, recordo-me de sonhar que chegávamos a Lisboa, me despiam, me enfiavam na cama, de o meu pai perseguir o meu tio até a porta do quarto se fechar, de a minha avó — Meninos da minha mãe a encolher os ombros na copa recordo-me de sonhar toda a noite que o meu marido sabia que ia morrer e culpava-me — Por que motivo não me disseste nada Celina? de mim tirando os anéis enquanto se aproximavam dele e lhe quebravam o vidro, enquanto — Seu pulha enquanto as espingardas, enquanto o corpo a escorregar, enquanto eu a limpar a maquilhagem e nenhum sangue no algodão, nenhuma lágrima devo ter adormecido visto ser domingo e nove horas no despertador de folha, os meus pais não estavam em casa, a minha avó saíra para a igreja, o meu tio em pijama, sem cheirar a água de colónia, tomava o pequeno-almoço na cozinha com a mala de viagem ao lado, não falou comigo, não me puxou as tranças, não me sorriu — Miúda ficou eternidades a mastigar em silêncio sem me agarrar pela cintura, jogar-me ao tecto apanhando-me antes que tombasse no chão — Voar Celina voar e eu desamparada um instante lá em cima, de nariz contra a lâmpada e o abajur de folhos, a assegurar-me que as prendas de Natal continuavam no topo do armário à espera que fosse dezembro e o Menino Jesus de barro, sempre escrupuloso com as datas, resolvesse abandonar o presépio e espalhar-mas na cama.


Vuela Celina vuela: me agarraron por la cintura, me lanzaron al techo, me cogieron antes de que cayera al suelo, me reí porque tenía miedo y me encantaba ese miedo, estuve indefensa un momento allí arriba, mi nariz contra la lámpara y la pantalla de volantes, bajé en una risita de pánico feliz, encontré el regazo de mi tío - Vuela Celina por un momento descubrí los paquetes de Navidad encima de los armarios, grandes, gordos, con lazos y papel estrellado - Quiero mi regalo - ¿Qué regalo? más alto que los mayores, más alto que los muebles, mi tío olía a colonia y mi padre a tabaco, cuando me hicieron volar el olor se desvaneció, mi madre contenta, mi abuela feliz, mi padre muy serio en la esquina del sofá, los ojos en el periódico, llamándole - Papá se despedía con la mano y mi padre se tapaba la cara con las noticias enterradas en las páginas, papá, mi tío guiñaba el ojo a mi madre y la expresión de mi abuela cambiaba, si yo quisiera, podría desenroscar la bombilla y nadie vería por la noche, o podría arreglar el palo de la pantalla de la lámpara con volantes que el pintor había doblado, Pero en cuanto lo pensé, me dispuse a inventar la oscuridad (puedo hacer que sea de noche, puedo hacer que sea de día) - Sin tocar la lámpara me puse en el suelo, los objetos se arremolinaban, tardé un rato en acostumbrarme a caminar por el suelo, primero oblicuo y sólo después recto, la alfombra volvía a ser la alfombra, la casa había vuelto a ser la casa, no tenía ganas de reír, no tenía ganas de que nadie me hablara, me senté bajo la mesa del almuerzo con el mantel y sus piernas a mi alrededor - Ven a comer Celina, la mano de mi tío se apoyó en la rodilla de mi madre y la rodilla de mi madre tembló, su mano debió de soltar el tenedor porque vino a coger la mano de mi tío, la colocó sobre su rodilla y la palmeó en una especie de advertencia o enfado antes de desaparecer en busca de los cubiertos, mi abuela se inclinó hacia atrás y sus dedos de largas uñas se masajeaban la espinilla, las piernas de mi padre permanecían rectas, uno de sus calcetines, sin elástico, mostraba un trozo de piel, el zapato de mi tío, mejor pulido que el mío y el de mi padre - Ven a comer Celina pisó la punta del zapato de mi madre, el tacón del otro zapato de mi madre, al que le faltaba la punta de goma, empezó a rozar de un lado a otro el tobillo de mi tío, su mano volvió a posarse en la rodilla de mi madre, se extendió un poco por su muslo y esta vez la mano de mi madre no la apartó, el tacón siguió rozando su tobillo, debió pincharlo con la uña porque el trasero de mi tío saltó un poco, la voz de mi abuela, preocupada, venía de la mitad invisible de su cintura para arriba - ¿Encontraste alguna espina Joaquim? la mano de mi madre, la que tenía la alianza y el anillo con la brillantina falsa que ocultaba el anillo (me lo probé cuando estaba en el baño y me lo dejé en el dormitorio y hasta se me resbaló del pulgar) acarició el pantalón de mi tío, consolándolo, la mano de mi tío apretó la suya, las falanges de ambos dobladas falange sí falange no, gruesas a finas, gruesas a finas, grueso a fino excepto sus pulgares en lo que parecía una lucha, lo grueso enredándose con lo fino y lo fino escapando, la servilleta de mi padre resbaló y cayó, sus manos se evaporaron inmediatamente, sus zapatos alineados, de dos en dos, como me enseñaron a hacer a la hora de dormir, sólo que ahora con gente dentro, el tobillo de mi tío tenía un arañazo rojo, su voz mientras la jarra de agua tintineaba en el vaso - Un gran grano - mi madre se lo tragó en un tono extraño que hizo que me picara la barriga - Qué horror - no del todo un tono extraño, una entonación que me mareaba sin entender por qué, me daban ganas de preguntar - Repítelo y estírate en la alfombra para sentir la aspereza de la lana o lo que era en mis riñones, bailando a derecha e izquierda y la alfombra haciéndome daño, pero no era dolor, cuando quise estirar la mano de mi padre, más oscura, con más pelo, tocó la servilleta perdida, abriendo y cerrando a ciegas, no la encontró, tocó más allá, se expandió en círculos, golpeó el talón de mi madre y el talón se deslizó desconcertado - Qué tontería, suéltame, ¿qué es esto?despertándome de la somnolencia y del deseo de hacerme daño en la alfombra, de conseguir algo que doliéndome daba y sabía que existía sin saber lo que era, una dulce rabia, un ímpetu, un desmayo - Celina volando la nariz contra la lámpara y la pantalla de volantes, el olor a colonia se alejaba y venía, me encantó ese miedo, la mano de mi padre encontró mi falda y la cogió por la servilleta - Padre uno - Padre igual que - Qué horror de mi madre, dedos oscuros y peludos, el calcetín sin elástico cubriendo su zapato, su cara bajo la toalla cerca de mi cara con las puntas de su barba en la barbilla y las mejillas, el blanco de los ojos enrojecido por el esfuerzo, una pequeña vena en la frente - Ven a comer Celina, el cojín en la silla para alcanzar el plato, mi abuela atándome demasiado fuerte los cordones del babero - No lo necesito, soy grande, mi mamá ahora sólo de cintura para arriba, lo que significaba que tenía dos mamás, la de la cabeza llevándome la sopa a la boca con muchos modales y la de las piernas sin modales, frotándome el talón de la uña contra el tobillo, la de los modales mirándome la cuchara en un gesto sin paciencia - No ensucies y cállate - Yo quería que me cogieran en brazos, que me ofrecieran regalos de la alacena, quedarme dormida y despertarme justo después de tener su edad (no. mayor) y que me regañaran, soy mayor que tú, quítame el babero inmediatamente y regálame un triciclo con timbre. La forma en que mi madre se quedaba de vez en cuando, quieta, sin ver, en actitud de oración, me daba cuenta de que mi tío había vuelto a pisarla y sus pulgares luchaban sobre su rodilla, mi padre estaba inmerso en el plato como el periódico, mi abuela furiosa o inquieta o ambas cosas - Manuela jugando con el anillo y soltándolo, espiando a mi padre, señalándome con el labio, presionando con el codo el codo de mi tío - Joaquim que había dejado de masticar y rezaba también, al borde de un ataque o flotando por la ventana abierta de par en par, buscándose en el pasillo, Sus bocas se tocaron y se alejaron rápidamente, mi madre dándome una bofetada, sollozando desconsoladamente - Qué loco, Joaquim, en ese tono extraño que me daba ganas de suplicar - Repítelo mientras la lana de la alfombra me lastimaba la espalda y no era dolor, era estar indefensa arriba por un momento con la nariz contra la lámpara, Celina volaba más alto que los mayores, más alto que los muebles, en un susto feliz, los objetos se arremolinaban, era desaprender a andar, al apartar la boca mi tío tropezó conmigo, se apoyó en la pared, preguntó a mi madre por el ángulo de sus labios (se le veían gotas de cansancio en la frente sin haber corrido ni empujado) - ¿Y si la niña cuenta? me indignaba el babero y el cojín de la silla por insistir en que yo era una niña cuando era más mayor que ellos, debería haber tenido una estantería de muñecas llena de frascos de perfume, quiero decir que no los perdería Catherine Mariana Luisa guardaría las muñecas y los frascos también, igual que, por ejemplo, yo podía montar en triciclo con tacones altos, cualquiera puede, mi tío, con su manía de que soy una niña, buscando el pañuelo en el bolsillo y limpiándose las gotitas - ¿Y si la niña cuenta? mi madre, en el tono agudo con el que se dirigía a mi padre y a las vendedoras de la plaza, con la nariz levantada en expresión de disgusto - ¿Tienes miedo? lo único que le faltaba era un bolso y una cesta de la compra, lo único que necesitaba era estar despintada y llevar tacones planos, por la noche se encerraba en el baño y salía con rulos y crema en las mejillas, nunca me dejó probarlo - Baje el tubo Celina y por eso tengo arrugas que la esteticista jura que son pliegues de expresión - Son pliegues de expresión señora Celina, pliegues de expresión mi culo, mantengo la cara quieta y ahí están, sonrío y permanecen intactas, aparte de las que aparecen con la sonrisa (cientos) intento hacer preguntas e ídem, enarco las cejas y veo a la esteticista en el espejo - Son pliegues de expresión mi culo Elisabete treinta años, diez años más joven que yo, sin celulitis, sin varices, nalgas firmes, cuello impecable, pegándome con mucho menos dinero, un marido borracho, una vida de puta, qué ridículo llorar - ¿Para qué vengo aquí cada mañana? el resto de los compradores en silencio, viejas de mi tipo, es decir, no tan viejas como para no considerarse viejas, tan enfadadas con el tiempo como yo, no tan decadentes como para dejar de compadecerse de sí mismas, una atmósfera de vapor, una cálida tranquilidad, el podólogo alineando pinzas sobre el mantel, masajes, vendajes, gimnasia, una mentira de promesas juveniles que nunca se cumplen, incluso ahora yo bajo la mesa, incluso ahora mi tío - Vuela Celina vuela mi madre (- ¿Y si la chica lo cuenta?) por el pasillo, estremecida de asco - Cobarde el desprecio de los tacones en el suelo, en una carrera militar, el de la punta de goma más ligera, el de la uña más dura, la rueda de molino enganchada en la uña que surcaba la tela y formaba barrigas, mi madre ni se dio cuenta, mi abuela aterrorizada - ¿Has visto a Manuela?abriendo el estuche de mis gafas (tenía tantas ganas de gafas, tenía tantas ganas de sujetador, me ponía las gafas y mi familia me respetaba, bostezaba sin poner la palma de la mano delante, leía los periódicos, no aguantaba el colegio) mi abuela con gafas examinando los desperfectos, intentando disimular los agujeros de los clavos con sus herramientas de costura, dando la vuelta al corredor para coser por debajo - Sí, señor Manuela, bonito servicio, mi madre miraba, miré a mi tío, sacudí la cabeza, mi tío sentado en el sofá junto a mi padre, temeroso y servicial, el olor a colonia y el olor a tabaco confundidos, más el olor a miedo y el rastro en su piel, el calcetín sin elástico mostraba un hueso asomando, mi tío en un entusiasmo difícil - ¿Quieres venir a pescar el domingo Fernando? los dos en la pared y yo aburrido como una ostra en un taburete de lona, desvestí y vestí a Mariana mil veces, acabé rompiéndole el brazo y olvidándome de ella, no podía inclinarme - No te inclines que te caes al Tajo Celina no podía hacer ruido, asustaría a los peces, no podía quitarme el sombrero de paja que me ponía enferma por el sol, no podía caminar cojeando, sólo tocando las piedras negras, lo que molestaba a mi padre, contaba los barcos y como no estaban alineados me perdí, empecé a contar de nuevo y a los diecisiete años me harté, el sol sembraba puñados de lentejuelas en el río, las gaviotas me miraban en la playa, me miraban como mi abuela miraba a mi madre, las aguas residuales bajaban por el Tajo entre pajas y tablones, un hombre recogía trozos de botella y los vertía en un saco, las olas arrastraban una boquilla, el cadáver de un gallo y una cesta de mimbre, todo era poco interesante, monótono, muy largo, había edificios deshabitados detrás de nosotros, con ventanas tapiadas, patios de arbustos secos y apuesto a que fantasmas, antes de que los fantasmas pudieran hacerme daño me agaché junto a la lata de cebo, Un gusano había golpeado el borde y se escurría - Gusano gusano el compañero de mi marido me llamó - Ven aquí gusano Mimi es sorda, no puede oír a mi padre en un zapato - Silenciosamente un arrastrero palpitaba en su estela diesel, Tantas arrugas Celina tantas arrugas y se levantaron de la playa, gritando, picoteando la franja negra mezclada con la espuma, de vez en cuando la caña de pescar se doblaba, giraban el carrete y no traían lubinas, traían un peso de plomo, limo, el anzuelo vacío, el agua formaba corchetes y comas que se ensanchaban alrededor de la línea como mis párpados - No se preocupe, señora Celina, son pliegues de expresión y el espejo para mí, no distraído, atento, escudriñando mis rasgos - Vas a morir, voy a morir escuchándote, por qué a mí, mientras me quitaba los anillos delante del tocador, la víspera rompieron la ventanilla del coche de mi marido, le obligaron a parar, los viejos policías me apuntaban con sus metralletas, mi cuerpo se sacudió en el asiento y se deslizó hasta el suelo, me puse a llorar en el espejo y mi marido, sin sospechar nada, se afanaba en desanudarse la corbata y guardar los gemelos en su copa - ¿No te encuentras bien, te molesta algo, Celina? - Tiene que ser mañana gusano no me digas que no lo prefieres así no me digas que te gustaría que nos denunciara a todos Mimi seguro que, aunque sorda, sabía lo nuestro y se callaba como hacía mi abuela - Su abuela es mejor que la tuya inventó la Coca Cola allá en Galicia Celina la sorda que se levantaba dormida para mirar el anuncio luminoso de la plaza, usaba un teléfono sin timbre con una lucecita que se encendía y apagaba, el compañero de mi marido me lo acercó al oído, ecos de palabras deformadas, como la garganta de Dios anunciando el Diluvio, la ahijada del obispo, incrédula, evaluando el aparato, tocándolo con precaución por miedo a las descargas - Credo mi marido, sin sospechar nada, ocupado en desabrocharse la corbata y guardar los gemelos en el cuenco - ¿No te encuentras bien, te molesta algo, Celina? un viudo más o menos de la edad de mi padre, igual de serio, igual de callado, igual de enterrado en el periódico pero con pecas y pelirrojo en el dorso de las manos, nos conocimos cuando el segundo hotel estaba terminado y yo trabajaba de administrativa en la compañía de seguros, era raro el día que no venían jacintos, ni rosas, ni camelias, jacintos, su pareja - Creo que el viejo se ha enamorado de ti la señorita Celina me sonrió, me invitó al cine a escondidas, a comer a escondidas, Somos socios en todo, gusano, sólo que él no tiene por qué enterarse de este asunto si cenamos los cuatro. Ella se metía en la boca la mitad de abajo de mi zapato al mismo tiempo que le explicaba la de arriba a la sorda, redondeando los ojos, el índice de la sorda hacía una bolita de pan sin dejar de medirme, yo pensaba - Ten por seguro que nunca te hará una escena, los sordos son diferentes, ¿lo sabías?

que entendía las cosas como lo hacen los animales, que podía ver a través de la toalla y percibir mis rodillas, mis piernas, que ni siquiera me odiaba, que cuando nos miraba miraba más allá de nosotros, como hizo esta mañana cuando me estudió en el espejo (qué ridículo enfadarse con la vejez, con las arrugas) el muro del río, las lentejuelas, las dos cañas de pescar, los edificios deshabitados, con patios de arbustos secos y serpientes, ratas, los espíritus de los muertos en los compartimentos vacíos, aparecían en mis rasgos, Mariana sin un brazo y de repente mi padre a mi tio - Bastardo tirando la lata de gusanos a las olas, tirando al agua el almuerzo empaquetado que se habia deshecho, el pollo, las patatas, el pan, las gaviotas soltaron el gasoil luchando entre los chillidos de un niño o una mujer - Recuerda que Mimi es sorda gusano no te preocupes no pares ahora luchando con tus piernas, un albatros los espantó en una ráfaga de plumas, cogió un trozo de coliflor y se fue, subiendo por el cielo en dirección a Malveira, las manos de mi padre igual que las gaviotas - ¿Crees que soy idiota, cabrón? el taburete de lona se lanzó a las olas, mi tío aplastó a Mariana con la suela, la baquelita reventó, el mecanismo tembló - Pipi era sólo un pequeño fuelle de tela sin misterio, provisto de un muelle como los relojes de cuco, no fue Mariana quien suspiró, era esa cosa, el pequeño fuelle temblaba, separado de la muñeca, la muñeca muerta en el suelo y el pequeño fuelle vivo - Pipi odio a Mariana, odio a toda la gente del mundo, tramposos, cuando llegue a Anjos voy a coger el martillo, los romperé y los tiraré al cubo de la basura, no tienes que fingir, no tienes que hacer una escena, No se preocupe, señora Celina, son pliegues de expresión con iris de plástico tumbado, un niño en bicicleta se detuvo a metros de mi padre y pisó el pedal del bordillo - Oh, compañero, las gaviotas, suspendidas, deseaban que mi tío se cayera del muro para descuartizarlo también, luchando con sus piernas, sus alas, sus pechos agitados, mi tío apretándose el labio con el pañuelo - Me quejo a la policía Fernando el sol se volvía transparente y púrpura, los sótanos de los edificios abandonados se disolvían en sombras, las gaviotas se desilusionaban poco a poco, dudando entre nosotros y el diesel, el chico de la bicicleta, que no olía a tabaco ni a colonia, olía a lona de barco, empujó a mi padre y a mi tío al coche -Juizinho me subió al asiento trasero, me entregó lo que quedaba de Mariana, su brazo amputado, la pequeña bolsa de tela, mi tío arrancó el coche, un perro flaco, más pequeño que sus ladridos, cruzaba la carretera en un melancólico estado de derrota, mi padre y mi tío eran un par de cuellos callados que se odiaban, las manos de mi tío sosteniendo el volante y las de mi padre en el aire con menos rabia que antes -Tú te arrastrabas al mismo tiempo que el cachorro suplicaba- Pipi sin que yo lo hubiera tocado, salí por la ventanilla y lo tiré a la oscuridad como si hubiera tirado mi brazo - Tramposo y luego debí quedarme dormido con los columpios porque no recuerdo nada más, llegar a Lisboa, que me desnudaran, que me metieran en la cama, recuerdo haber soñado que llegábamos a Lisboa, que me desnudaban y que me metían en la cama, de mi padre persiguiendo a mi tío hasta que la puerta del dormitorio se cerró de golpe, de mi abuela - Los hijos de mi madre encogiéndose de hombros en el fregadero - Recuerdo haber soñado toda la noche que mi marido sabía que iba a morir y me culpaba a mí - ¿Por qué no me dijiste nada Celina? ¿Por qué no me dijiste nada Celina? Recuerdo que mis padres no estaban en casa, mi abuela se había ido a la iglesia, mi tío en pijama, sin olor a colonia, desayunando en la cocina con su maleta al lado, sin hablarme, no me tiraba de las coletas, no me sonreía - Miúda se pasaba horas masticando en silencio sin agarrarme por la cintura, lanzarme al techo y cogerme antes de que cayera al suelo - Celina volando y yo indefensa por un momento allí arriba, con la nariz contra la lámpara y la pantalla de volantes, asegurándome de que los regalos de Navidad seguían en lo alto del armario, esperando a que llegara diciembre y a que el Niño Jesús de barro, siempre escrupuloso con las fechas, decidiera salir de la cuna y los extendiera sobre la cama.


–Durante mucho tiempo –comenta Lobo Antunes– he intentado encontrar un estado próximo a la sensación de la locura, y después de cuatro horas trabajo, en ese extraño estado entre la fatiga y la ensoñación, es cuando me resulta más fácil encontrar soluciones literarias. 

Mientras leo a Lobo Antunes tengo la sensación de estar bailando con él un paso a dos .

Let's be careful out there 

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