Ninho de toutinegra
num alcatruz
que sede!
Rogerio Martins.
nido de curruca
sobre un asfalto
¡qué sed!
O Grande Borges
Nunca coleccionei nada, nunca juntei papéis, nunca guardei manuscritos: vivo do vento. Não tenho cartão multibanco, nem cartão dourado, nem cartão de visita. Trago o dinheiro no bolso como os negociantes de porcos e os intermediários da droga. Não me importa o que visto ou o que como, nunca bebi, não vou a jantares, e devo ser aborrecidíssimo porque não me aborreço. Em criança brincava quase sempre sozinho: continuo a brincar sozinho dentro da minha cabeça, assistindo às coisas que se fazem e se desfazem continuamente nela. Não faço parte de nenhuma associação, nenhum movimento, nenhu- ma confraria, nenhum partido. Quase não falo e, em regra, quase não oiço. Gosto de algumas pessoas, de alguns lugares, de alguns livros. Não odeio ninguém, não invejo ninguém: não por ser bom rapaz mas por não ter tempo. Escrever é um acto que raramente associo ao pra- zer e que, no entanto, me leva a maior parte das horas: desconheço a razão de ser um homem de palavrinhas, colocando umas diante das outras numa furiosa e mansa paciência obstinada. E não tenho mais a dizer a meu respeito. Tudo o que ficou acima é verdade e no entanto não sou to. O que serei então? Para mim mesmo, sa. Vou assistindo às coisas espantado. Comovo-me surpre- a esconder tudo para dentro, caladinho, e às vezes por tão pouco. Ao pé do sítio onde faço os livros arranjei um amigo: um velhote bêbedo, sem emprego, que parece mover-se como debaixo de água, silencioso e lento. Quan do vem à tona os gestos dele boiam. Os olhos também, a flutuarem no frasco de líquido amarelo da cara, ora mais acima ora mais abaixo, ao acaso, trocistas. Fala com uma voz de bolhinhas de aquário, cada bolhinha uma sílaba: lá vão surgindo umas marem uma diante das outras até for espécie de frase. Quando cala junto-as, ponho-as por se ordem e desta vez era
Deixei de meter vinho à goela
e mal se aguentava nas canetas. Usa cabelo pelos ombros, à antiga, não bem cabelo, um hino à caspa e à gordura. E uma gravata que se assemelha a uma corda de enforcado. Mais bolhinhas: espero que aca- be para as arrumar. Enquanto as arrumo ele espera, pedindo auxílio a uma parede e a um As bolhinhas automóvel estacionado para continuar de pé.
-Necas aqui há para ajuda uma?
mudo-lhes a ordem, experimento esta agora, fica
- Há uma ajuda aqui para o Necas?
com o indicador e o polegar a esfregarem-se e um dos olhos do frasco numa piscadela cúmplice. O olho que sobra vai seguindo uma mulata que alugou um quarto no prédio de azulejos em frente, de madeixas desfrisadas e nádegas de alcatruz. Um acesso de bolhas perse- gue-a
- Sua jeitosona
enquanto a mulata fende o alcatrão numa majestade de petroleiro a sair a barra. Ao desaparecer, o olho que se dedicava à mulata apaga- -se de tristeza, sem emprego. Nem quando lhe entrego uma moeda se anima, pendurado no fundo do frasco numa orfandade sem remédio, e a um galho de tipuana, irá amarrar a gravata a uma trave? empura o hino a casa paraxias, com a mãozinha incerta, atira bão para um balcão de
- Um copinho para mim e um copinho para um sujeito de fato-macaco, lá dentro, apoia-o Grande Borges o meu doutor
acompanhado por dois colegas de cigarro folhear com nojo um jornal desportivo, no bico, um deles a concluir de cátedra a
- Não jogam nada de jeito estes camelos
rancorosa, achando consolo o jornal a fechar ea com uma palmada no vermute. Pega no calice de dedinho espetado, uma vez que conser- va restos de elegância que o facto de coçar as partes com a mão livre não consegue anular. O grande Borges informa-me, por intermédio das bolhas
-Piolhos gajo daquele tem não aproxime se que ou seja
- Não se aproxime daquele gajo que tem piolhos
a mão que se dedicava a coçar as partes estica o médio e encolhe as falanges à direita e à esquerda do médio, mantendo a elegância do dedinho espetado no vermute, fico a pensar qual das duas mãos será sincera, o grande Borges, a quem o vinho restituiu a energia, promete
- Levas um pão nos cromados que ficas oito dias a cuspir solarine
afasta-se com pompa a puxar-me o cotovelo
Estes caramelos ainda o deseducam doutor
e três passos depois esquece-me, dedicado a espreitar o fundo da rua na mira do regresso da mulata. Não sozinho, claro: espreitamos ambos o fundo da rua na mira do regresso da mulata, que para além das madeixas desfrisadas e das nádegas de alcatruz se enfeita de brincos que são círculos de cobre do tamanho de pratos de sopa. Infelizmente no lugar da mulata surge uma criatura com uma bengala só, no passeio uma vez à esquerda a remar e uma vez à direita como os gondolei- ros. O grande Borges põe-se a reflectir, conclui Envelheceu depressa, a mulata instala-se no lancil, derrotado, meio dos pombos nar. e eu deixei de existir. Lá está ele no no peito, a resso. à sombra e dos contentores do lixo, de nariz Dorme onde calha: num degrau, numa entrada de casa, multibanco de uma camioneta qualquer. Tal como eu não tem cartão nem cartão dourado, nem cartões de visita. Tal como eu não guarda manuscritos e não vai a jantares. Tal como eu não faz parte de nenhu ma associação, nenhum movimento, nenhuma confraria, nenhum partido. Portanto, se me fizesse o favor de se chegar para o lado, podíamos dormir juntos um bocadinho.
Antonio Lobo Antunes, Quarto livro de crónicas, Ed. Don Quixote
El gran Borges.
Nunca he coleccionado nada, nunca junté papeles, nunca he guardado manuscritos: vivo del viento. No tengo tarjeta de cajero automático, ni Visa oro, ni de negocios. Llevo dinero en el bolsillo como los comerciantes de cerdos y los traficantes de drogas. No me importa lo que me pongo ni lo que como, nunca he bebido, no voy a cenas de gala y debo de ser muy aburrido porque no me aburro. Cuando era niño casi siempre jugaba solo: sigo jugando solo dentro de mi cabeza, observando las cosas que se hacen y deshacen continuamente en ella. No formo parte de ninguna asociación, de ningún movimiento, de ninguna fraternidad, de ningún partido. Apenas hablo y, por regla general, apenas escucho. Me gustan algunas personas, algunos lugares y algunos libros. No odio a nadie, no envidio a nadie: no porque sea un buen tipo, sino porque no tengo tiempo. Escribir es un acto que rara vez asocio con el placer y, sin embargo, ocupa la mayor parte de mis horas: no sé por qué soy un hombre de pocas palabras, anteponiendo una a otra en una furiosa y mansa paciencia obstinada. Y no tengo más que decir sobre mí. Todo lo anterior es cierto y, sin embargo, no sé nada al respecto. Observo las cosas con asombro. Me conmueve ocultarlo todo. ¿Qué seré entonces? Para mí mismo, sobre todo una sorpresa - por dentro, en silencio, y a veces por tan poco. Cerca del lugar donde escribo los libros, he encontrado un amigo: un viejo borracho, sin trabajo, que parece moverse como bajo el agua, silencioso y lentamente. Cuando sale a la superficie sus gestos flotan. Sus ojos también, flotando en la botella de líquido amarillo de su cara, a veces más altos, a veces más bajos, al azar, burlones. Habla con una voz de pequeñas burbujas de acuario, cada burbuja una sílaba, van surgiendo unas delante de las otras. Cuando se calla, las sumo, las pongo en orden y esta vez era
- Dejé de llenar de vino mi garganta
y apenas podía sujetar sus bolígrafos. Lleva el pelo por los hombros, a la antigua, no es un buen pelo, un himno a la caspa y la grasa Y una corbata que se parece a una soga de ahorcado. Mas burbujas: espero a que termine para ordenarlas. Mientras las ordeno, él espera, preguntando
a un muro y a un coche aparcado para seguir de pie.
Las burbujas
- Necas aquí hay ayuda una
Cambio el orden, pruebo este ahora, se queda
- ¿Hay alguna ayuda aquí para Necas?
con el índice y el pulgar entrelazados y uno de los ojos de la botella en un guiño cómplice. El ojo restante sigue a una mulata que ha alquilado una habitación en el edificio de azulejos de enfrente, con mechones despeinados y cilíndricas nalgas . Una afluencia de burbujas la persigue
- guapetona
mientras la mulata agrieta el asfalto con la majestuosidad de un petrolero saliendo del puerto. Cuando desaparece, el ojo que estaba dedicado a la mulata se queda triste, sin trabajo. Ni siquiera cuando le de doy una moneda se anima, colgando del fondo del tarro en estado de orfandad.¿Atará su corbata a una rama de tipuana, a una viga? No:
empuja el himno a la caspa para atrás con mano incierta, lanza burbujas sobre la barra de un bar cercano
-Un vaso para mí y otro para mi médico un tipo con mono lo apoya
- El gran Borges
acompañado de dos colegas con cigarrillos en la boca, uno de ellos hojeando con disgusto un periódico deportivo, sentando cátedra
Estos camellos no juegan nada bien
Y cierra o el periódico de un manotazo rencoroso, encontrando consuelo en el vermut. Coge la copa con el dedo asomado, como si estuviera fijando restos de elegancia que al rascar las piezas con la mano libre no puede anular. El gran Borges me informa a través de las burbujas
- Los piojos de ese tipo ni se aproxime siquiera
En otras palabras
-No se acerque a ese tipo que tiene piojos
la mano que se dedicaba a rascar las piezas estira el centro y encoge el
falanges a derecha e izquierda del medio, manteniendo la elegancia del
dedo meñique metido en el vermú, me pregunto cuál de las dos manos será sincera, el gran Borges, cuya energía fue restaurada por el vino, promete
- Tendrás una barra de pan en el cromo y estarás escupiendo durante ocho días Solarine se aleja pomposamente tirando de mi codo
- Estos caramelos siguen sin educarle, Doctor
Y tres pasos después se olvida de mí, dedicado a mirar calle abajo a la vista del regreso de la mulata. No solo, por supuesto: los dos estamos mirando calle abajo para ver el regreso de la mulata, que, además de sus mechones despeinados y sus cilíndricas nalgas , va adornada con unos pendientes que son círculos de cobre del tamaño de platos hondos. Desgraciadamente, en el lugar de la mulata aparece una criatura con un solo bastón, remando por el paseo una vez a la izquierda y otra a la derecha como los gondoleros. El gran Borges reflexiona y concluye
- Envejeció rápido la mulata
se instala en el bordillo, derrotado, y dejé de existir. Ahí está, entre las palomas y los cubos de basura, con la nariz en el pecho, roncando . Duerme donde puede: en un portal, en un escalón de la calle, a la sombra de algún camión. Como yo, no tiene tarjeta de cajero automático, ni tarjeta oro, ni tarjetas de visita. Igual que yo, no guarda manuscritos ni va a cenas.. Igual que yo, no pertenece a ninguna organización, ni asociación, ni movimiento, ni hermandad, ni partido. Así que, si me hace el favor de moverse un poco, podríamos dormir juntos.
Traducción, R.Ferreira
Let's be careful out there
No hay comentarios:
Publicar un comentario