lunes, 23 de octubre de 2023

Todas as manhãs do mundo

[...] esas ropas y esas formas recuperarían una especie de resplandor y de movimiento, y que tal vez esta antiquísima sombra femenina erigiese a su lado, en el aire, el recuerdo de un cuerpo vivo [...]
Pascal Quignard 
 

A estrada que levava à casa de Sainte Colombe ficava barrenta quando chegava o frio. Sainte Colombe detestava Paris, o estalido dos cascos dos cavalos e o tinir das esporas no calçamento, o ranger dos eixos das carruagens e o ferro das charretes. Era cheio de manias. Esmagava escaravelhos e besouros com a base dos castiçais, o que fazia um barulho singular: o lento estalar das mandíbulas e élitros sob a pressão regular do metal. As pequenas gostavam de vê-lo fazer aquilo com satisfação. Até lhe levavam joaninhas. O homem não era tão frio quanto o descreviam; era desajeitado ao expressar as emoções; não sabia fazer os gestos de carinho de que as crianças tanto gostam; não era capaz de manter uma conversa durável com ninguém, salvo com os senhores Baugin e Lancelot. Sainte Colombe fora companheiro de estudos de Claude Lancelot e se encontrava às vezes com ele nos dias em que a senhora de Pont-Carré recebia convidados. Fisicamente, era um homem alto, espinhoso, muito magro, amarelo como um marmelo, brusco. Mantinha a coluna surpreendentemente reta, o olhar fixo, os lábios cerrados. Embora reservado, era capaz de se descontrair. Gostava de jogar baralho com as filhas enquanto tomava vinho. Naqueles tempos, fumava todas as noites um longo cachimbo de barro das Ardennes. Não costumava seguir a moda. Usava os seus cabelos negros amarrados, como no tempo das guerras, e em volta do pescoço, sempre que saía de casa, um colarinho plissado. Na juventude, fora apresentado ao falecido rei e, desde então, sem que se soubesse por quê, nunca mais pôs os pés no Louvre ou no antigo castelo de Saint-Germain. Nunca mais tirou as roupas pretas. Podia tanto ser violento e irritadiço quanto terno. Quando ouvia chorar durante a noite, acontecia-lhe de ir ao andar de cima e, com a vela nas mãos, cantar ajoelhado entre as filhas: Sola vivebat in antris Magdalena Lugens et suspirans die ac nocte… ou então: Ele morreu pobre e pobre eu viverei E o ouro Repousa No palácio de mármore onde ainda brinca o rei. Às vezes, as pequenas perguntavam, sobretudo Toinette: “Como era a mamãe?” Ele se entristecia, então, e não se podia tirar dele mais nenhuma palavra. Um dia, disse a elas: “Vocês precisam ser boazinhas. Precisam ser trabalhadoras. Estou contente com as duas, sobretudo com Madeleine, que é mais sensata. Lamento a perda da vossa mãe. Cada uma das lembranças que guardei da minha esposa é um pedaço de alegria que nunca mais vou reaver.” Desculpou-se novamente com elas por não conseguir se expressar bem; a mãe delas, ela sim, sabia falar e rir; disse que, quanto a ele, tinha pouco apego à linguagem e nenhum prazer na companhia das pessoas, nem na dos livros e dos discursos. Mesmo as poesias de Vauquelin des Yveteaux e aquelas dos seus antigos amigos nunca lhe agradavam totalmente. Fora próximo do senhor de La Petitière, que tinha sido guarda-do-corpo do Cardeal, tornando-se mais tarde solitário e sapateiro daqueles senhores, substituindo o senhor Marais, o pai. O mesmo se aplicava à pintura, salvo a do senhor Baugin. O senhor de Sainte Colombe não apreciava a pintura que fazia, na época, o senhor de Champaigne. Considerava-a mais triste do que grave, e mais pobre do que sóbria. O mesmo valia para a arquitetura, a escultura, as artes mecânicas, a religião, com exceção da senhora de Pont-Carré. A verdade é que a senhora de Pont-Carré tocava teorba e alaúde muito bem, pois não sacrificara completamente a Deus esse dom. Ela lhe enviava de vez em quando sua carruagem, quando já não suportava mais tanta privação de música, o fazia ir a seu palacete e o acompanhava à teorba até ficar com a vista embaralhada. Tinha uma viola preta da época do rei Francisco i, que Sainte Colombe manejava como se fosse um ícone egípcio. Era sujeito a cóleras sem motivos aparentes, o que apavorava as crianças, pois, durante esses acessos, quebrava os móveis gritando: “Ah! Ah!”, como se estivesse sufocando. Era bastante exigente com elas, tinha medo de que não fossem muito bem instruídas por um homem sozinho. Era severo e não deixava de puni-las. Não sabia repreendê-las, nem levantar a mão para elas, nem lhes mostrar o chicote; assim, ele as trancava no celeiro ou na adega, onde as esquecia. Guignotte, a cozinheira, ia soltá-las. Madeleine nunca se queixava. A cada cólera do pai, ela se comportava como uma embarcação que virava e afundava de repente: deixava de comer e se recolhia no silêncio. Toinette se rebelava, fazia reivindicações, gritava com ele. À medida que crescia, seu temperamento ficava cada vez mais parecido com o da senhora de Sainte Colombe. A irmã, com o rosto imerso no medo, não dizia uma palavra sequer e recusava até mesmo uma colherada de sopa. De resto, elas o viam pouco. Viviam na companhia de Guignotte, do senhor Pardoux e do senhor de Bures. Ou iam à capela limpar as estátuas, tirar as teias de aranha e arranjar as flores. Guignotte, que era originária do Languedoc e tinha o costume de deixar os cabelos sempre soltos nas costas, fizera-lhes varas de pescar quebrando galhos de árvores. Assim que o bom tempo chegava, as três, com um fio, um anzol e um papelote servindo de isca para ver os peixes fisgarem, enrolavam as saias e deslizavam os pés nus na lama. Tiravam do Bièvre a fritura da noite, que misturavam na frigideira com um pouco de farinha de trigo e vinagre do vinho das cepas do senhor de Sainte Colombe, que era bem medíocre. Durante esse tempo, o músico ficava horas sentado em seu tamborete, sobre um velho pedaço de veludo verde de Gênova que as suas nádegas haviam consumido, trancado em sua cabana. O senhor de Sainte Colombe a chamava de sua “vorde”. “Vordes” é uma palavra antiga que designa a borda úmida de um curso de água sob os salgueiros. No alto da amoreira, em frente aos salgueiros, com a cabeça ereta, os lábios cerrados, o torso inclinado sobre o instrumento, a mão tateando sobre os trastes, enquanto aperfeiçoava sua técnica com exercícios, acontecia de árias ou lamentos irromperem sob seus dedos. Quando reapareciam ou, quando se tornavam uma obsessão e o importunavam em seu leito solitário, abria o caderno de música vermelho e os transcrevia apressadamente para não mais se preocupar.
Capítulo 2. Tradução, Yolanda Vilela. Zain Editora

Let's be careful out there 

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